domingo, 19 de maio de 2019

Entre caras e caretas

Por Julia Donato


As artes manuais, como a caricatura, transmitem algo que transcende a imagem do objeto e dialoga diretamente com o espírito do espectador, diferente da fotografia que é uma representação exata e vazia de um objeto, de acordo com o entendimento de Töpffer (1852). No entanto, a partir de meados do século XIX, fotografia e caricatura começaram a desenvolver uma frutífera relação. A partir disso, a autora Andrea Cuarterolo, em seu texto Entre caras y caretas: caricatura y fotografía en los inicios de la prensa ilustrada argentina, estuda as particularidades desse fenômeno na imprensa gráfica argentina, dando atenção, principalmente, na produção da revista Caras y Caretas, cujo caráter pioneiro influenciou outras publicações ilustradas.

A autora analisou essa interação da fotografia com a caricatura a partir de três perspectivas: a fotografia como uso auxiliar da caricatura; a fotografia como referente intertextual; e a fotomontagem. Ela utilizou uma metodologia comparativa entre as fotografias conservadas no Archivo General de la Nación de Buenos Aires e as caricaturas publicadas nas revistas. Além da análise do aspecto formal da fotografia e caricatura, Andrea levou em conta a temática e ideologia relacionadas.


Caras y Caretas

Foi uma importante revista semanal da Argentina, durante os anos de 1898 e 1941. Se caracterizava pela sátira política, humor e temas da atualidade, acompanhados por elementos como a fotografia e/ou caricatura, principalmente.

Disponível aqui
Em 1982, a revista reapareceu em plena Guerra das Malvinas com o trabalho de jovens desenhistas e humoristas como Miguel Rep, Peni, José Massaroli, Mannken, Canelo, Pollini, Fasulo, Huadi, Petisuí, Enrique Pinti, Geno Díaz, Gila, Bourse Herrera, e escritores como Oscar Bevilacqua, Fermín Chávez, Miguel Grinberg, Marco Denevi, Bernardo Kordon, Roberto Mero, Helvio Botana, Eugenio Mandrini e Jorge Claudio Morhain.

Em 2005, a revista foi relançada como ponto de referência a pesquisas históricas, com os temas de política, arte e cultura. Hoje, o grupo Caras y Caretas contém:

  • Revista Caras y Caretas
  • Libros de Caras y Caretas
  • Centro Cultural Caras y Caretas
  • Cine y Documentos Audiovisuales
  • Premios Democracia

Curiosidades
-Em 2015, a Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional da Espanha disponibilizou alguns exemplares da revista. Os exemplares podem ser consultados neste link.
- O site da revista pode ser visto neste link e a página no facebook neste link.
- Em 2018, o pesquisador Felipe Pereira Rissato descobriu a que pode ser a última foto do escritor Machado de Assis, publicada na revista Caras y Caretas em 25 de janeiro de 1908. A matéria completa pode ser lida aqui.

A fotografia como auxiliar

Com a invenção das placas de colódio úmido, as fotografias se tornaram mais populares, uma vez que havia a possibilidade de realizar múltiplas cópias a partir de um mesmo negativo. Então, a fotografia se converteu em auxiliar para pintores e desenhistas que a utilizaram como modelo para as suas composições. Porém, como os jornais e revistas da época só poderiam colocar as fotografias como anexo e como esse processo era caro, as fotografias eram tomadas como modelos e transformadas em desenhos, litografia ou gravuras. Os ilustradores satíricos se aproveitaram disso para dar vida a suas composições.




A fotografia como referente intertextual

Os caricaturistas usavam a imagem fotográfica como referência intertextual, atribuindo-lhe um papel central a decodificação da mensagem humorística ou irônica de suas ilustrações. Muitas vezes, a caricatura fazia referência a fotografias já publicadas em outra edição da revista. Este tipo de caricatura apelou a um receptor visualmente informado, ávido consumidor de imagens, como de fato foi o leitor de Caras y Caretas. Por meio dessa ligação constante de imagens dentro da própria revista, foi proposto um jogo auto-referencial, cujo propósito era, evidentemente, a criação de uma certa cumplicidade com aquele leitor fiel que comprou a publicação semanalmente. Esse treinamento visual foi algo que a revista fomentava, por meio de concursos fotográficos em que um fragmento de uma fotografia publicada era mostrado aos leitores e eles deveriam identificar em que número e com qual epígrafe aparecia.



A fotomontagem: a fotografia como componente

Se a imagem fotográfica era uma ferramenta e, às vezes, uma inspiração para caricaturistas, a caricatura serviu de forma semelhante aos fotógrafos, como evidenciado pelo extenso uso que essas publicações fizeram da fotomontagem. Caras y Caretas popularizou dois tipos de fotomontagens: aquelas que combinavam fotografia e caricatura e aquelas compostas inteiramente por fotografias.




Considerações finais

A inclusão de fotografias, desenhos e ilustrações e a relação dessas imagens entre si levaram a uma mudança comunicativa no leitor no que diz respeito ao objeto impresso. A coexistência de caricaturas com os seus modelos fotográficos trouxeram um jogo entre o realismo da fotografia e a deformação paródica da caricatura. Apesar de defender a objetividade e veracidade das fotografias, a revista fez da manipulação fotográfica e do humor uma de suas características distintivas.


Referências

CUARTEROLO, A. Entre caras y caretas: caricatura y fotografía en los inicios de la prensa ilustrada argentina. Significação: Revista de Cultura Audiovisual, v. 44, n. 47, p. 155-177, 13 jul. 2017.
TÖPFFER, R. De la plaque Daguerre. À propos des excursions daguerriennes. Paris: Joël Cherbuliez, 1852. p. 233-282.

7 comentários:

  1. Olá!

    Mais excelente relato de Julia Donato.

    Como dado complementar gostaria de citar alguns relatos sobre a relação Caricatura x Foto que podem ser encontrados na publicação "La mirada inquieta. Nuevo fotoperiodismo mexicano, 1976-1996" de autoria do pioneiro na representação da história da mídia moderna John Mraz (https://www.academia.edu/1341835/Mraz._La_mirada_inquieta._Nuevo_fotoperiodismo_mexicano_1976-1996).

    Vale a pena dar uma lida!

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  2. Também achei outro artigo complementar a esse: "La fotografía en la revista Caras y Caretas en Argentina (1898-1939): innovaciones técnicas, profesionalización e imágenes de actualidad" de Cora Gamarnik. (http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/iberoamericana/article/view/27391/16684)

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  3. Pensando em fotodocumentação e fazendo um link com esse texto que Julia nos apresentou, gostaria de discutir recontextualização:

    Como informado pela autora, as fotografias eram tomadas como modelos e transformadas em desenhos, litografia ou gravuras, e os ilustradores satíricos se aproveitaram disso para dar vida a suas composições. Podemos ver claramente nas figuras 2 e 3.


    Pensando em recontextualização, um artista poderia trazer essas fotos que nunca foram aquilo que ele está dizendo que são, e torná-las verídicas pelo fato de apresentarem uma composição irônica de determinada figura e/ou instituição, etc.


    Assim, o que mais vale em uma figura satírica não é sua veracidade, mas sua intencionalidade, e para compreendê-la, é preciso entender o contexto.

    O que vocês acham?

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  4. Um segundo comentário que gostaria de fazer a respeito da fotodocumentação diz respeito à esta citação inicial do texto:

    “As artes manuais, como a caricatura, transmitem algo que transcende a imagem do objeto e dialoga diretamente com o espírito do espectador, diferente da fotografia que é uma representação exata e vazia de um objeto, de acordo com o entendimento de Töpffer (1852).”

    A minha dúvida está nessa objetividade e veracidade atribuídas às fotografias, vimos em outros textos que fotografias não são exatas, e um objeto “vazio” em uma foto, pode justamente trazer essa transcendência atribuída (neste comentário) apenas às artes manuais e caricaturas.

    Como vimos, um dos critérios para o tratamento informacional é o contexto histórico e sócio-cultural, que envolve layout, vestimenta, objetos, etc.

    Sendo assim meus caros colegas, vocês acham que fotografia é uma representação exata e vazia de um objeto?

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  5. Pessoal, pensei em outra coisa:

    Quando falamos que uma coisa é a perspectiva do fotógrafo e outra é de quem o fotógrafo servia, isso pode ser também atribuído às caricaturas, não acham? Ou seja, as próprias caricaturas poderiam servir interesses específicos (interesses de quem se serve).

    Parece óbvio, mas assim como quando falamos da perspectiva do fotógrafo quando tira uma foto e muda uma perspectiva sobre determinado fato, o mesmo poderia ocorrer com a caricatura?

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  6. Complemento do comentário anterior:

    A indústria midiática naquela época não existia como existe hoje, e as caricaturas eram sim um importante dispositivo satírico de oposição e formação de opinião. Em todo caso, o que quero dizer é que a caricatura era baseada nas posições ideológicas do próprio caricaturista. Digo isso porque essa é a relação que gostaria de estabelecer com a perspectiva do fotógrafo.

    Tanto o caricaturista como o fotógrafo fazem uma escolha ao fazer um registro, e os elementos desse registro podem “dizer” ou não coisas que não poderiam ser ditas em outro gênero. Lembrem por exemplo da foto que vimos em sala de aula do ex-presidente João Figueiredo com o quepe militar. Essa escolha de registro transmite ao observador uma mensagem que não precisa ser escrita, basta que se entenda o contexto.
    A foto de dois fotógrafos diferentes em relação ao mesmo fato não serão iguais, assim como caricaturas sobre um fato também não serão iguais, no entanto ela seguirão alguns padrões definidos pela época.

    Para tentar me aprofundar um pouco mais nessa afirmativa, encontrei essa dissertação: “Caricatura política e a produção de discursos derrisórios” de Marcelo Silvestrin Siqueri, que me pareceu muito interessante.

    Link de acesso: https://www1.ufmt.br/ufmt/unidade/userfiles/publicacoes/878032927af26a2119deaf8938990d87.pdf

    Nela encontrei vários trechos interessantes, mas destaquei dois que talvez sejam interessantes para a discussão que coloco.

    1.
    “Mas afinal, o que é derrisão? Poderíamos servi-la de entrada, como uma doce violência, que funciona como uma ofensa, mas que se desculpa pelo riso que provoca e, por isso, pode isentar os sujeitos de uma açãoo legal por danos morais. (p.11)”

    Ou seja, tanto no caso da caricatura como no caso das fotografias (como o caso desta feita do ex-presidente Figueiredo), não há algo que possa trazer a estes caricaturistas problemas legais, uma vez que não é dito o que quer se dizer.

    2.
    “Contudo, para que uma caricatura política alcance uma representação derrisória, ela deve obedecer a um sistema coerente de exigências, isto é, o verbal e o não-verbal devem estar combinados de modo organizado e não dispostos em uma simples mistura. Dessa perspectiva, poderíamos identificar nessa regularidade, nessa ordem, de acordo com a conveniência, uma formação discursiva, tal qual Pêcheux (1995, p. 160) a concebe: aquilo que pode e deve ser dito (articulado sob a forma de uma arenga, de um sermão, de um panfleto, de uma exposição, de um programa, etc.) a partir de uma posição dada numa conjuntura dada. Ao concebermos a noção de formação discursiva nas caricaturas, buscamos nessa articulação um posicionamento ideológico do caricaturista, verificando como o sujeito se utiliza das estratégias caricaturais para se colocar no dizível, ou melhor, no visível. Segundo Pêcheux (1995, p. 160), “as palavras, expressões, proposições, etc., mudam de sentido segundo as posições sustentadas por aqueles que as empregam.” (p.37)

    Nessa dissertação que mencionei há casos de caricaturistas brasileiros que foram processados (para quem quiser ver está na p.48).

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  7. Conforme relatado no texto, as fotografias, desenhos e ilustrações e a relação dessas imagens entre si concomitantemente ao uso destas em caricaturas levaram a uma mudança na comunicação que originalmente estas foram objeto.

    As imagens retratadas em fotografias analógicas ou digitais são "algo concreto", aconteceram de fato (não entrando no mérito desta garantia nas digitais poderem ser manipuladas) enquanto que os desenhos, as ilustrações e as caricaturas são objeto da mente e da imaginação daqueles que a produzem, absorvendo um evento ocorrido de fato transformando-o conforme seu interesse (ou solicitado).

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