segunda-feira, 17 de junho de 2019

Imágenes de la postdictadura en Argentina

                                                                                                                                                                     Cora Gamarnik







Por Rafael Dias da Silva



1983: campanha eleitoral e retorno à democracia

As primeiras eleições democráticas presidenciais foram realizadas em outubro de 1983, após sete anos de terrorismo de Estado, que deixou milhares de desaparecidos, mortos, exilados e um país economicamente devastado. A derrota das tropas argentinas na guerra das Malvinas, em junho de 1982, acelerou o fim da ditadura militar e abriu novas e profundas feridas. Raul Alfonsín, candidato da Unión Cívica Radical (UCR) ganhou aquelas eleições presidenciais antecipadas e um período chamado por cientistas políticos e historiadores de "transição para a democracia" foi iniciado.

No país, as manifestações se multiplicaram, as ruas eram uma festa e os fotógrafos registraram todos esses eventos. Atos políticos, artísticos, culturais, marchas em defesa dos direitos humanos, protestos sindicais e de bairro reuniram centenas de milhares de pessoas. Os mesmos fotojornalistas que tinham fotografado os vários eventos de 1982 e 1983, que haviam se acostumado a fotografar entre balas de borracha e gás lacrimogêneo, estavam agora registrando a recuperação do espaço público.

No meio da campanha eleitoral os fotógrafos organizaram a “Tercer Muestra de Periodismo Gráfico” para ser exposta antes da eleição, mas ela não pôde ser realizada até o governo eleito ser instalado. O material a ser exibido foi considerado "agressão às forças de segurança pelas autoridades militares. Finalmente, em 17 de dezembro de 1983, ela foi inaugurada, desta vez como país já em democracia. Na capa do catálogo apareceram três fotos: dois manifestantes empunhando uma cerca contra a Casa Rosada, tirada na “Marcha de la Multipartidaria” em 16 de Dezembro de 1982 por Jorge Rilo; uma mãe e filha com lenços brancos como um sinal de grito de luta, pois o marido/pai desapareceu, tirada por Adriana Lestido e; finalmente, uma imagem em que um condor é visto emoldurando o Congreso de la Nación, tirada por Daniel Merle.


Capa do catálogo da Tercer Muestra de Periodismo Gráfico Argentino. Dezembro 1983.


O fim da ditadura, a luta pelos direitos humanos e a democracia nascente ainda ameaçada foi o caminho proposto nesta seleção. Um total de 107 fotógrafos com 321 fotografias participaram desta terceira exposição.

A exposição foi organizada por temas, em vez de por fotógrafo, como havia sido em anos anteriores. Os eixos com os quais as imagens foram agrupadas foram: Eleições, Direitos Humanos, Política, Personagens, Informações Gerais, Esportes e Diversos. Cada autor deveria sugerir, no verso de sua imagem, em qual seção ela deveria ficar. Uma seção também foi habilitada para fotografias enviadas por repórteres argentinos que viviam no exterior. A mostra foi ordenada iniciando com as fotos dos direitos humanos e terminando com as imagens ligadas à campanha eleitoral, contando assim uma história.

A mostra teve um significado político e social e colocou o fotojornalista como um ator central no relato jornalístico dos eventos do fim da ditadura. Nas fotos em exposição era possível ver o renascimento da vida política, as Madres de Plaza de Mayo, em ações de luta e resistência, novos atores políticos que se apresentaram às eleições, fotos de denúncia do aparato militar e cenas de pobreza, entre outras.


Fotografia exposta na Tercer Muestra de Periodismo Gráfico Argentino. Dezembro de 1983. Autor: Daniel García


Fotografia exposta na Tercer Muestra de Periodismo Gráfico Argentino. Dezembro de 1983. Autor: Eduardo Longoni.

Nesta ocasião, os organizadores dispuseram cadernos para que o público se expressasse: "Deve ser imperdível para todos os alunos do ensino médio do país"; “Gracias por mostrarnos la realidad”; “Es obligación verla”; “Gracias a los milicos tenemos exposiciones como estas. Dios quiera que no haya otra”; “¡Cuánto dolor !”; “Ustedes nos hacen ver las cosas que tan solo miramos”; “Ni olvido ni perdón”; “Me conmovió. No lo olvidaré. Tampoco mis hijos, mis nietos. Algunas me ayudarán a observar el período próximo con más cautela”; “Tengo 70 años. Creí que mi capacidad de asombro estaba colmada pero ¡no! Basta de esto, que nunca nos olvidaremos. ¡Viva la democracia!”; “Estas fotos están muy bien tomadas, deberían salir en los diarios” (9 años). A última frase, escrita por uma criança, apontava para o próprio centro da questão da cumplicidade midiática com a ditadura. Essas fotos não foram publicadas nos meios de comunicação de massa.

Fotojornalistas na democracia

Os primeiros anos depois da recuperação da democracia foram caracterizados na Argentina por uma reorganização da esfera pública (Habermas, 1994). O entusiasmo pré-eleitoral invadiu todas as áreas sociais. A necessidade de ver e discutir diferentes aspectos políticos e sociais influenciou na diversificação de espaços e temas nos quais os fotojornalistas se apresentaram, nas imagens obtidas e na organização que eles próprios deram. A tão esperada democracia e a celebração da recuperação do espaço público naqueles primeiros anos a princípio obstruíram a possibilidade de ver as linhas de continuidade entre o governo militar e a democracia nascente. Em linhas gerais, havia na sociedade em geral uma idealização da democracia como contrapartida da ditadura. A decepção e o desencanto ainda não haviam chegado. Nesse contexto, alguns fotógrafos tiraram fotos que iniciaram uma longa jornada contra o esquecimento.

Os fotógrafos emergiram fortalecidos como um coletivo no final da ditadura. Tinham realizado as primeiras três Muestras de Periodismo Gráfico no país (1981, 1982 e 1983), nas quais exibiram fotos de muito grande impacto na época e que ainda são ícones daquele passado até hoje: imagens das grandes manifestações de 1982 e 1983, cenas de repressão nas ruas, fotos das Madres de Plaza de Mayo, a recuperação da vida política, a campanha eleitoral. Alguns fotógrafos e algumas fotografias em particular apontaram o perigo que esse passado autoritário ainda representava.

O ano de 1984 foi chave na organização de fotógrafos. O Grupo de Reporteros Gráficos, que havia organizado as três primeiras mostras de jornalismo gráfico fora da associação que as agrupou, assumiu a liderança da ARGRA (Asociación de Reporteros Gráficos de la República Argentina). Eles relançaram a revista Reportero Gráfico sob a direção de Guillermo Loiácono e começaram a divulgar diversas demandas sindicais e trabalhistas.


Capa da revista Reportero Gráfico, editada pela Asociación de Reporteros Gráficos de la República Argentina (ARGRA). Novembro de 1984

No final de 1983 e ao longo de 1984 houve um turbilhão de eventos no país. Alfonsín assumiu com uma cota reduzida de poder, enquanto os setores do golpe permaneceram à espreita. De fato, nos primeiros meses de governo houveram numerosas tentativas de corroer o governo eleito com campanhas em diferentes jornais e revistas como Somos, Ámbito Financiero, La Prensa, La Nueva Provincia, Cabildo (Ferrari, 2013).


O repúdio popular à ditadura aumentava à medida que o horror dos crimes se revelava. Esta revelação (realizada em muitos casos com um tratamento de show midiático pela mesma imprensa que havia apoiado o regime) trouxe consigo um enorme sentimento de indignação e a condenação da repressão ilegal se estendeu além das diferenças ideológicas e políticas.

As exposições de jornalismo gráfico de 1984 e 1985 refletiram a ebulição social daqueles anos. Os fotógrafos, já distantes da repressão direta da ditadura, permitiram fotografar novos temas e experimentar novos recursos. Ensaios documentais, fotos de grandes eventos jornalísticos e imagens metafóricas são vistos mais claramente nessas mostras.

Tanto na mostra de 1984 quanto na de 1985 há fotos de sofrimento, ironia, humor, fotos de esperança, de busca, fotos transgressoras, de denúncia, fotos das principais figuras políticas de cada ano, fotos de violência, de eventos jornalísticos, como incêndios, acidentes de trânsito, fotos de esportes. Fotos que mostram pobreza, desespero. Fotos documentais: os índios do nordeste da Argentina, um ensaio sobre saúde mental, uma casa estudantil, trabalho nas minas, trabalhadores portuários, vários ofícios, parentes de prisioneiros durante um motim. As fotos do movimento dos direitos humanos e as fotos críticas da Igreja ainda estão muito presentes. Há fotos internacionais, especialmente da Nicarágua, Chile e Bolívia. Fotos de manifestações e de partos (ambos intimamente relacionados entre si naqueles anos). Também imagens da reativação política e de personagens que, mais tarde saberíamos, desempenharam um papel fundamental durante a ditadura militar.

As mostras permitiram aos fotógrafos fazer sua própria edição, o que foi um passo importante na valoração de sua autonomia. Removido do seu espaço habitual, a imprensa, as imagens mudaram para outro nível de legibilidade. Enquanto a fotografia na imprensa é um gênero subordinado a outros discursos e às decisões de edição e design que os outros tomam (na imprensa, essas mesmas fotografias devem fazer parte do jogo intertextual que foi gerado a partir da localização e editoração que se faziam nesse meio), nas mostras, os próprios fotógrafos decidiam como pendurá-las, em que ordem, com que epígrafes. As fotos, isoladas de títulos, legendas ou epígrafes colocadas por outros, geraram um discurso autônomo criado pelos próprios fotógrafos.

As mostras nos fornecem uma seleção das fotografias de imprensa que os fotojornalistas mais importantes daqueles anos decidiram expor publicamente. Há imagens nelas que transcenderam o momento daquela apresentação e se tornaram os ícones que costumam ser usados para dizer o que aconteceu naqueles anos. São imagens que suportam os links entre memória e fotografia. Como Hugo Vezzetti aponta, o passado requer, para se tornar uma experiência operável e transmissível, imagens e histórias, bem como interpretações e conceituações racionais (Vezzetti, 1996). Para os anos de 1984 e 1985, há especialmente duas fotografias que funcionaram nesse sentido e foram as mais significativas em cada uma das mostras feitas naqueles anos.

Capa do catálogo da Cuarta Muestra de Periodismo Gráfico Argentino. Novembro 1984. 
Capa do catálogo da Quinta Muestra de Periodismo Gráfico Argentino. Novembro 1985.



A ponta do iceberg

Na noite de 21 de agosto de 1984, o fotógrafo Enrique Rosito tirou uma foto mostrando a seguinte cena: Luciano Benjamín Menéndez, com uma faca na mão, ataca alguns manifestantes (que estão fora de cena) enquanto dois dos seus guardiões tentam contê-lo. No fundo você pode ver um fotógrafo gravando a cena de outro ângulo.

O repressor L. B. Menéndez corre com uma faca na mão na direção dos manifestantes. Fotógrafo Enrique Rosito. Buenos Aires, 21 de agosto de 1984.
Naquela época, Menéndez gozava de liberdade, apesar dos crimes contra a humanidade que ele havia cometido e os apresentadores do programa de televisão Tiempo Nuevo, Bernardo Neustadt e Mariano Grondona, concederam-lhe a legitimidade necessária para convidá-lo para um debate televisivo sobre o referendo antes do tratado de limites com o Chile pelo canal de Beagle.

O fotógrafo conta como ele conseguiu a imagem. Ele menciona detalhes que nos dizem sobre a maneira como ele exerceu seu trabalho: observação, reflexões, localização no espaço, espera, decisões baseadas na luz, determinações técnicas que influenciaram suas decisões e resultados, a parte do acaso. O depoimento também mostra a necessidade dos manifestantes de que o momento seja registrado, para que se torne visível. Sua afirmação nos permite observar como o fotógrafo operou com as limitações técnicas, espaciais e temporais. Também nos dá indicações do trabalho subseqüente do repórter. Na era da fotografia analógica não sabia o que tinha conseguido até o momento da revelação e uma vez que as imagens eram obtidas, os filmes deveriam ser transferidos para um laboratório, onde as fotos eram reveladas, selecionadas, editadas e enviadas para a mídia.

O único jornal que teve os reflexos rápidos e pode mudar a sua capa na hora do encerramento foi Clarín, mas o fez com uma epígrafe em que afirmou que o assediado por manifestantes havia sido Menendez e que, frente a este fato, o militar reagiu. Intitulada "Menéndez: incidente grave", a legenda dizia: "Na saída do Canal 13, onde havia participado de um programa jornalístico, o general Luciano Benjamín Menéndez foi hostilizado por um grupo de manifestantes. O militar reagiu com uma arma branca. Dois de seus companheiros o contiveram" (Diario Clarín, Capa, 22 de agosto de 1984).

O impacto e a transcendência que teve esta foto nos mostra sobre o papel desempenhado por pelo menos parte do fotojornalismo na Argentina naqueles anos. Na imagem, Menéndez foi claramente visto com uma faca na mão, que mais tarde ficou conhecida como uma faca de paraquedista de cerca de 35 cm. de comprimento. Menéndez tentou atacar os manifestantes, que foram reprimidos pela polícia. Quatro deles foram detidos.

Diante da força da imagem, o impacto nacional e internacional foi imediato. A foto não permitia leituras ambíguas. Nos dias seguintes, foi publicada na primeira página dos principais jornais nacionais e internacionais: difundida pela Agencia DYN e UPI saiu no New York Times, Daily News, Herald Tribune, Los Angeles Times, Chicago Tribune, Miami Herald, El País e vários jornais e revistas da América Latina e da Europa. O jornal da esquerda francesa Libération publicou a foto com o título: "Eu mato quem me chamar de assassino". Na Argentina, todos os jornais de circulação nacional levaram essa informação na capa durante toda a semana. No sábado, 25 de agosto, a mídia anunciou que Menendez seria preso preventivamente (Clarín, La Voz, Tiempo Argentino e La Nación, 25 de agosto de 1984).

Capa do jornal Clarín, Buenos Aires, 22 de agosto de 1984.

A foto que deixou desnuda a fragilidade da democracia argentina desencadeou um papelão internacional e caiu como um raio sobre o governo Alfonsinista. Um militar comprovadamente assassino estava livre e era capaz de segurar uma faca em plena rua contra jovens e mães.

O trabalho dos fotógrafos que ali estavam permitiram dar visibilidade nacional e internacional ao fato e amplificar a afirmação. Ser chefe de um dos maiores campos de concentração da ditadura não foi suficiente para Menendez ser preso. A difusão da fotografia conseguiu isso. Na quarta-feira, 29 de agosto, ele foi detido com prisão preventiva por "excessos repressivos".

Capa do jornal La Voz, Buenos Aires, 29 de agosto de 1984.

A foto ganhou o prêmio Rei de Espanha no ano seguinte. Aquela cena resumia a violência, a onipotência e a impunidade dos homens que mantiveram o poder na Argentina durante os anos de terrorismo de Estado. Ao mesmo tempo, ele denunciava o governo eleito que o deixou livre e os jornalistas que o convidaram como painelista especial para participar de um programa de televisão. A foto mostrou em vários sentidos a ponta de um iceberg.

Fotografia como buraco e ferroada

Diante da divulgação dessa imagem, o presidente eleito Raúl Alfonsín ficou pressionado por dois lados. Por um lado, o escândalo internacional amplificado pela publicação da fotografia nos principais jornais do mundo. Por outro, a pressão militar que lutava para perpetuar a impunidade. Para as organizações de direitos humanos, a fotografia acabou sendo um apoio inesperado com um efeito poderoso. Legitimava suas denuncias e conseguia que se concretizasse a solicitação, para a prisão do genocida, que havia mobilizado milhares de pessoas, inúmeras vezes, sem ter conseguido isso. Uma semana após a publicação da fotografia, Menéndez foi detido e ficou à disposição do Consejo Supremo de las Fuerzas Armadas.

Essa imagem de um assassino livre que ameaçava impunemente a manifestantes e jornalistas era por sua vez o outro lado da imagem que o presidente Alfonsín tinha passado sobre si mesmo: um estadista preocupado com formas democráticas e em fazer cumprir o Estado de direito.

Essa foto, com seu fator de prova, seu papel de denúncia e sua força simbólica, colaborou para "descompactar" o processo de consolidação da impunidade que se tentava naturalizar.

Havia algo intrínseco nessa imagem que a tornava poderosa. Nenhuma mídia queria se privar de uma imagem com essa capacidade de impacto. A imprensa, mesmo a que foi cúmplice do regime, ampliou a acusação e diferentes atores sociais acrescentaram sua voz pedindo esclarecimentos e investigações sobre o ocorrido. Desta forma, o fotógrafo acabou por ser um elo fundamental em uma cadeia de eventos que por sua vez levou a outras reações políticas e sociais que se seguiram após a sua publicação.

Nesse caso, havia a excepcionalidade de que era a própria existência da fotografia que modificava os acontecimentos do evento. Se a imagem não tivesse sido produzida, Menéndez teria ficado preso menos tempo. Ele compõe, nesse sentido, o que Didí-Huberman chama de "evento visual" (Didí-Huberman, 2004).

Ao mesmo tempo, essa foto pode ser compreendida em toda a sua complexidade, se for lida e analisada como parte e produto dos processos históricos, sociais e tecnológicos que a possibilitaram e, ao mesmo tempo, deram a ela (e dão) sentido. Roland Barthes afirmou que as fotografias têm uma "força de constância" que diz respeito mais ao tempo do que ao objeto. Segundo o semiólogo francês, esse "poder de autenticação" é o poder da fotografia. John Tagg, retornando ao que disse Barthes, acrescenta que essa força constante "é um resultado histórico complexo, e é exercido por fotografias apenas dentro de certas práticas institucionais e relações históricas concretas ..." (Tagg, 2005).

A fotografia atuou como um catalisador e potenciador de outras reivindicações sociais. Diante do manto de esquecimento e perdão que estava tentando instalar, a foto explodiu provocando um buraco que deu força ao discurso pela memória, verdade e justiça. Desta forma, ajudou a legitimar as reivindicações das organizações de direitos humanos. Ao mesmo tempo, era uma ferroada para aqueles setores que queriam "deixar o passado para trás".

Uma foto ética em frente ao "show de terror"

Nos primeiros meses de 1984, o chamado "destape" midiático com o qual a imprensa se libertava da censura e do que era proibido durante a ditadura (sexo, "palavrões", corpos nus, etc.) coexistiram com as notícias sobre o desaparecimento de pessoas e a irrupção na cena da mídia das descobertas dos cadáveres Nomen Nescio (NN) em sepultamentos massivos. Muitos meios de comunicação que foram cúmplices e parte central dos andaimes culturais da ditadura foram "adaptados" aos tempos democráticos através da publicação destas notícias. As exumações de túmulos anônimos, feitas no âmbito das primeiras investigações sobre o destino dos desaparecidos em cemitérios em todo o país, coexistiram com a nudez, as garotas da capa e os temas "audaciosos". Esta inserção na cena midiática foi chamada por alguns atores como o "show de horror" (Feld, 2014).

Paralelamente a esse "destape", durante o ano de 1985, foi realizado o Juicio a las Juntas Militares que governaram o país durante a ditadura, por sua responsabilidade em crimes contra a humanidade. Diante da profusa disseminação das imagens sensacionalistas que haviam sido vistas, especialmente em 1984, a Câmara Federal, que julgava os ex-comandantes havia decidido, segundo a Acordada 14, proibir a entrada de cinegrafistas e fotógrafos às salas onde o julgamento aconteceria. De acordo com Claudia Feld: "a Acordada proibiu o ingresso de jornalistas com câmeras fotográficas, cinematográficas ou de vídeo, com microfones ou com gravadores e autorizou a  a presença de quatro fotógrafos oficiais que distribuíram as imagens obtidas aos diferentes meios e agências de notícias. Estas fotografias foram tiradas nos momentos iniciais e finais de cada audiência, evitando assim perturbar os depoimentos" (Feld, 2002).

Toda a mídia então distribuiu rapidamente essas imagens. Eduardo Longoni e Daniel Muzio foram dois dos fotógrafos credenciados. Daniel Muzio conta:

“A princípio a cobertura foi complicada porque a Câmara Federal não quis imagens do julgamento. Após vários dias de negociação, foi possível entrar um pool. Um fotógrafo representando os jornais, um fotógrafo as agências e um fotógrafo as revistas. Eu fazia parte do pool como fotógrafo de agência. A mesma imagem seria distribuída para toda a mídia. E os dias de trabalho foram muito longos porque o julgamento começava às três da tarde e não se sabia que horas terminava" (Muzio, 2010).

Em 30 de março de 1985, nesse contexto de trabalho, Muzio capturou a imagem que se tornou o símbolo do julgamento. A foto foi obtida na audiência na qual o cientista Clyde C. Snow, membro da delegação de cientistas forenses e geneticistas enviada pelo "Programa de Derechos Humanos y Ciencias" da Associação Americana para o Avanço das Ciências, explicou aos juízes as características dos impactos da bala nos cadáveres NN encontrados em valas comuns.

Uma cena do Juicio a las Juntas Militares. Autor: Daniel Muzio. Buenos Aires, 30 de março de 1985.

O trabalho de Muzio se transformou na imagem simbólica do Juicio a las Juntas e foi usado (e continua sendo usado) em muitas ocasiões em que se faz referência a este julgamento. Sua foto também é uma tomada de posição tanto em termos de formas como em conteúdo. A imagem do julgamento permitia mostrar os eventos traumáticos que ali eram relatados sem recorrer à espetaculização do horror. Essa foto, junto com outras tiradas por vários fotojornalistas, circulou sob o pano de fundo das imagens sensacionalistas e chocantes de uma certa mídia de massa, demostrando que havia uma maneira ética de narrar o que acontecia sob o terrorismo de Estado. Há tanto nessa imagem como na foto de E. Rosito uma elaboração estética que permitiu, tanto ao fotógrafo, quanto a quem agora a observa, afastar-se e ao mesmo tempo envolver-se no fato.

Os fotógrafos se aproximaram, selecionaram, envolveram-se, invadiram em certa forma o espaço social que é, por definição, o terreno no qual são desenvolvidos os fatos políticos. Diferente da escrita, que permite manter a distância, a fotografia exige a presença física do autor no cenário dos eventos. Os fotógrafos transformaram uma experiência vivida em uma encenação. "Estiveram ali" onde os eventos aconteceram e foram parte desses eventos. Suas fotos são contribuições concretas para o processo de construção da democracia na Argentina.

São imagens que foram transformadas em "acontecimentos visuais" ao mesmo tempo que na "constatação" dos fatos. Esses fotógrafos se distanciaram para mostrar e diante do "show de horror" adotaram um ponto de vista ético. Não havia casualidade em suas fotos, não apenas um "momento oportuno", mas fundamentalmente uma posição tomada.

3 comentários:

  1. Queridos colegas,

    Na opinião de vocês, após leitura do post e leituras anteriores, é possível o fotógrafo afastar-se e ao mesmo tempo envolver-se no fato fotografado?

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  2. Para mim parece óbvio que quando um veículo de mídia deixa de apoiar determinado sujeito ou instituição, este muda o seu discurso. Isso não provoca estranhamento, o que vale é perceber a função da foto em relação à isso. A imagem para ser alguma coisa deve ser consolidada em um documento, e as fotos são importantes vetores para formar opinião.
    A imagem para gerar alterações de conteúdo deve ser usada em um documento (por exemplo, jornais). Podemos ver por exemplo, que em relação à algumas das fotos apresentadas no texto, o contexto e o texto fazem toda a diferença - para dominar o conteúdo de uma imagem é preciso dominar o referente - diferente das charges e caricaturas com imagens que não precisam de rótulos visuais, elas “falam” por si mesmas. Por exemplo a foto de Menendez parece ser a de um homem sendo preso, e não contido para ser protegido.

    Lembrando ainda sobre o poder da mídia, não podemos esquecer a função do sujeito (fotógrafo), podemos lembrar de nossas discussões sobre a perspectiva do fotógrafo e de quem o fotógrafo servia.

    Em relação à pergunta do Rafael, acho que o fato fotografado sempre terá o envolvimento do fotógrafo, e sempre se afastará de alguma perspectiva para priorizar outra.

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  3. Ao longo desse semestre (1/2019), quase não estudamos textos que abordassem a fotografia por meio de um viés social e político. No semestre passado vimos muitos estudos da Argentina que consideravam a fotografia como instrumento de denúncia à violação dos direitos humanos. Interessante notar que, diferente dos textos anteriores, nos quais mostravam essa função da fotografia por meio de movimentos sociais e humanitários na busca por informações dos desaparecidos políticos, a apresentação do Rafael nos mostra o olhar do fotógrafo perante à repressão que ocorreu na Argentina, revelando os motivos dos comportamentos dos fotógrafos e os porquês das perspectivas da imagem terem mudado conforme o período.

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